Bodyspace (PT)
Não será por mero acidente que o nome de Taylor Deupree obtém, com mais esta resenha apontada a si, lugar cativo entre o restrito grupo de artistas que me mereceram cinco ou mais destaques aqui pelo atelier onde a boa música é o Alá de cada um. Também Taylor Deupree é – passe o exagero – uma espécie de despretensioso Alá, se atendermos a que, de disco para disco, é menor o número de passos que o separa de um domínio omnipotente do som e das suas aplicações. Sem nunca ter usufruído muito dos efeitos vantajosos que teria a exposição da sua cidadania nova-iorquina, o autor de Stil. não deixa, mesmo assim, de evidenciar qualidades pessoais úteis à sobrevivência na big apple: a sofisticação, a capacidade de reinvenção e um alcance visionário que impede cada trabalho de parecer datado logo à nascença.
Ajuda isso a salientar que The Sleeping Morning não se parece exactamente com nada do que tinha feito até aqui Deupree e, contudo, também não constitui golpe de ruptura desferido sobre um passado imperturbavelmente sólido (e repleto de pontos altos, desde January ao mais recente Northern). Ao invés disso, surge o curto EP como natural resultado do reencontro que levou Taylor Deupree a reactivar a interacção com o grego Savvas Ysatis, após uma década de interregno, que os separa das colaborações mantidas nos projectos Futique, Arc e SETI (nome que mais se salienta pelo trio de discos gloriosamente alienígenas em reserva). Dada a sua especial vocação para reunir dois cúmplices separados, não se estranha que The Sleeping Morning se adeqúe gradualmente a um registo solene e se fixe num terreno neutro que admite a adesão de corpos digitais vários (mais espairecidos e superficiais do que é habitual em Deupree), assim como de uma voz humedecida por um eco que torna mais submersa a manhã também pontuada por outros ruminares rítmicos e repetições de sons que gotejam.
A coleccionável edição da 12k vai-se assumindo, enfim, como um diálogo atentamente zeloso em relação aos seus discursos, entretanto tornados oráculo conjunto das propriedades do som quando banhado por um orvalho que impede que sejam bruscos os movimentos de componentes orgânicas ainda atrofiadas pelo pesar matinal. A repetição dos termos rise and fall, no âmago de “Listen to the Morning Sleeping”, é indicativa do sentido verticalmente oscilante que percorrem as névoas texturais, à medida que procuram descobrir a saída a um elaborado jardim que nunca dispôs de tal coisa, assumindo-se sempre como cíclico e autónomo. The Sleeping Morning é impalpável malha onde se perdem os sentidos. Quem procura um contacto quase curativo com uma electro-acústica altamente propícia à meditação, pode confiar a sua alma ao Taylor Deupree dos dias que correm. Está bem entregue. – Miguel Arsénio